terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Afinal de contas quem escreveu a Bíblia?

Não! Ao contrário do que possa parecer pelo título, eu não estou aqui para proporcionar hipóteses sobre quais foram as pessoas responsáveis pela redação do livro sagrado da religião cristã (se foi mesmo Moisés o autor do Pentateuco, se foi Lucas o redator do livro de Atos ou tentar encontrar a teoria mais plausível para dizer quem foi que escreveu a carta destinada aos hebreus). Tão pouco venho aqui tentar definir o período exato de cada um dos 66 livros contidos na Bíblia (se ela começou a ser escrita no período de Moisés, se ela foi concatenada no período do Exílio babilônico, ou mesmo se foi algo inventado por volta do século III D.C). Não pretendo levantar tais debates, pois isso trairia a confiança dos (muitíssimos) fiéis seguidores deste blog que foram atraídos pelos debates antropológicos que aqui estão presentes. A pergunta aqui, portanto, é muito mais básica e até meio tola, como a maior parte das perguntas oriundas da antropologia: Quem escreveu a Bíblia foram homens ou foi Deus?

“Você só pode estar brincando!”, poderá ser a reação de alguns que leram esta pergunta, “é claro que não foi Deus quem pegou uma pena e escreveu um livro, a Bíblia é uma invenção dos homens, criada para nada menos do que manipular uma sociedade. Além do mais, como uma ciência pode se perguntar se Deus foi o responsável por alguma coisa? Deus nem existe!”. Para estes vou pedir que olhem o que está escrito no topo dessa página da internet. Para aqueles que encontraram algo parecido com “DISCUSSÕES ANTROPOLÓGICAS”, meus sinceros parabéns, vocês conseguiram atingir o cerne da questão. Para aqueles que mesmo lendo não conseguiram, eu vou dar uma forcinha (espero que tenham paciência com um breve parêntese que será necessário).

A antropologia é uma “ciência” (há muita divergência aqui, mas deixaremos isso para outro momento) que busca compreender o ser humano: seu comportamento, sua forma de pensar, os símbolos culturais que orquestram sua vida, suas organizações sociais, entre muitas outras coisas. Mas o que para mim é talvez o mais fascinante da antropologia é o fato desta se colocar numa busca de compreendê-lo a partir dos seus próprios termos. Ou seja, a antropologia leva em consideração o que os nativos (pessoas, grupos ou sociedades sobre as quais as análises antropológicas serão realizadas) têm a dizer sobre eles mesmos. Isso significa que a antropologia não está aqui para dizer se Deus existe ou não existe, mas sim para entender como uma comunidade, ou nesse caso, milhões (ou bilhões) de pessoas vivem influenciados por esse Deus. Se Deus existe ou não, isso não importa, mas sim que ele existe para um grupo, e que esse grupo vive influenciado pela noção de Deus. Fim do parêntese.
O que estou buscando aqui é então levar em consideração o que os nativos têm a dizer sobre quem foi que escreveu a Bíblia, foi Deus ou foram os homens? Se me permitem utilizar termos mais próprios à disciplina, refaço a pergunta da seguinte forma: a Palavra de Deus é transcendente ou imanente?

Os cristãos que estão lendo respondam em suas cabeças, e os que não são tentem pensar utilizando o conhecimento que vocês possuem sobre essa religião e imaginem o que um cristão responderia. Fácil a pergunta, certo? Para aqueles que responderam que a Bíblia é transcendente (algo que está para além do homem e existe independentemente deste), meus parabéns novamente, vocês dificilmente vão encontrar algum pastor ou padre dizer que algo ao contrário disso. Isso por que, na concepção nativa, por mais que tenha sido por meio de homens que o texto sagrado foi redigido, estes foram totalmente inspirados pelo Espírito Santo fazendo com que tudo que ali está escrito seja como se estivesse sido redigido pelos punhos de Deus. A Bíblia é palavra de Deus, e não de homens (lembro aos seguidores que estou levando em consideração o discurso nativo). A inspiração divina e a sua providência garantem que tudo que ali esteja escrito é sua palavra.

No entanto, aqueles que já leram a Bíblia podem ficar espantados ao ler o conteúdo do décimo primeiro capítulo da primeira epístola de Paulo à igreja dos Coríntios, quando este diz que as mulheres não devem orar com a cabeça descoberta. Se interrogarmos às lideranças de igrejas que têm a Bíblia como A ÚNICA REGRA DE FÉ E PRÁTICA (automaticamente excluo a Igreja Católica Apostólica Romana que utiliza de vários documentos papais, encíclicas, a própria tradição, etc, para orientar a sua fé) para suas vidas, sobre os motivos que os levam a não exigirem o uso do véu em suas igrejas, podemos obter a seguinte resposta: “por mais que a Bíblia seja a Palavra de Deus, ela foi escrita por homens, e esses incluíram no seu texto certos aspectos de culturais que na época eram válidos mas que hoje em dia já não são mais”. Podemos questionar também se a maneira “desordenada” de João escrever não é bastante diferente da maneira profundamente racional e bem articulada presente na redação de Paulo. Isso tudo aponta para a presença do homem na escrita da Bíblia, para aquilo que a filosofia chamaria de imanência (aquilo que tem profunda ligação com o sujeito, que não existe se não for por ele).
Os que andam por ai com um detector que tem a sua direita a palavra “transcendente” e a esquerda a palavra “imanente” em busca de entender a essência de certos fenômenos ou coisas da vida darão um soco forte na mesa e dirão: “Impossível! Como pode o meu aparelho hora ter seu ponteiro voltado para a direita hora para a esquerda?”. Verificarão se as baterias estão fracas e após trocar por novas darão um segundo soco, dessa vez mais forte, na messa exclamando: “Blasfêmia! Uma coisa não pode ser transcendente e imanente ao mesmo tempo. OU bem a Bíblia é uma criação dos homens (imanência) OU ela é mesmo criação de Deus transcendendo infinitamente o homem! Nós, modernos, exigimos uma resposta!”

A questão foi lançada e acredito que agora as coisas estejam mais interessantes. Para deixar um pouquinho menos interessante, permita-me gastar um tempinho falando um pouquinho de antropologia. Indo direto ao ponto, digo que o projeto ao qual estudiosos e acadêmicos dão o nome de modernidade foi marcado por uma separação profunda entre as esferas da vida, geralmente oposições que tem por objetivo “purificar” as coisas. Separação de certas categorias como sociedade/natureza, sujeito/objeto, fato/valor, transcendência/imanência, entre outras. Isso significa que a política não leva mais em conta o discurso da igreja, que a ciência transcende o homem não levando em consideração aquilo que a política tem a dizer sobre o mundo (afinal de contas fato é fato e independe do homem e valor ou moral são construções humanas). Cientistas definem o que é o mundo, políticos fazem o mesmo, e como de costume a religião também, mas cada um com sua parte do coletivo. Os políticos falam dos sujeitos, a ciência dos fatos e das coisas e a religião da moral e dos valores. O tecido entrelaçado que fazia parte da cultura humana se soltou e agora esta fragmentado. Ao contrário do que acontece com os não modernos (selvagens, bárbaros, povos não ocidentais, povos sem escrita), a natureza não se confunde com a sociedade. Homem é homem, animal é animal. Basta ler qualquer etnografia que será possível verificar que o antropólogo busca realizar um discurso único sobre os nativos. A religião deles organiza sua vida econômica, que influencia suas questões políticas e suas relações de parentesco. Mas isso já não é possível para os modernos, não conseguimos verificar uma unidade em suas vidas. São essas rupturas que marcam o pensamento moderno e que nos fazem tão diferentes dos outros. Somos puros e não misturamos características opostas em um mesmo ser.

Sobre isso Bruno Latour, em um brilhante livro (Jamais Fomos Modernos) mostra que na verdade mesmo nós os modernos nunca conseguimos nos livrar da velha matriz antropológica que faz com que os homens produzam constantemente híbridos (coisas que apresentam duas características “opostas em sua essência). Poderia escrever muito mais para falar sobre esse livro, mas vou acelerar um pouco. A contribuição que Latour nos dá é que se tentarmos utilizar apenas uma categoria (vamos pegar, por exemplo, a categoria transcendência) para abarcar a totalidade de um fenômeno (por exemplo a Palavra de Deus), jamais conseguiremos compreendê-lo por completo. Deixaríamos metade deste fenômeno sem explicação ao taxá-lo rapidamente como pertencente a uma (transcendência) ou a outra (imanência) categoria. Isso porque as coisas são híbridas, cada fenômeno é um duplo (ou talvez mais) de categorias explicativas que na verdade não possuem nada de opostas. Transcendência e imanência não são oposições ou contradições, antes uma completa a outra e as duas estão presentes na maior parte das coisas que fazem parte da vida.

A idéia é retirar os aparelhos utilizados pelos modernos para medir a essência de um dado fato e fazer com que eles não mais fiquem indignados quando não conseguem obter uma resposta para suas perguntas. A operação “ou bem uma coisa é imanente, ou bem ela é transcendente” deve mudar urgentemente para uma outra (“e” “e”): “uma coisa é imanente E transcendente ao mesmo tempo”. Pois apenas assim descreveremos os fatos levando a sério o discurso nativo a respeito dos mesmos.

Complicado? Bom, escrevi aqui algumas breves reflexões sobre o que pode vir a ser um futuro projeto de pesquisa a ser desenvolvido por mim. Buscarei demonstrar que a antropologia não deve lançar mão dessas categorias criadas pela modernidade para tentar explicar os fatos da vida, pois estas não são capazes de abarcar a totalidade destes. Utilizarei para tal o exemplo da Bíblia, que a meu ver é um duplo. Ao contrário da Bíblia ser totalmente transcendente, totalmente imanente, ou mesmo ser fruto de uma contradição por apresentar características de ambas as noções, ela é um duplo e não deve ser taxada rapidamente.

Para isso peço a ajuda dos senhores para colocarem suas opiniões sobre o tema e escreverem livremente. Peço em especial a ajudar do Pastor Presbiteriano que acompanha este espaço para que colabore e aponte qualquer erro que eu esteja cometendo ao pensar na Bíblia da maneira como eu tenho pensado. Ainda não apresentei tal projeto para o meu orientador, então ele talvez esteja com vários erros a serem corrigidos. Peço que apontem todos! E me perdoem por quaisquer erros gramaticais que eu tenha cometido. Já são 2 da manhã e o texto está muito longo! E se o texto estiver confuso não possuindo uma lógica interna me falem que eu tentarei reescrevê-lo.

Obrigado aos que perseveraram na leitura do longo texto.